terça-feira, 15 de agosto de 2023

 Almas não usam roupas.

(Davi Salles)
Margarete Souto Miranda, é uma socialite muito rica, que julgava as pessoas pelas roupas do corpo. Só que de relance, seus olhos estavam vendo externamente, e quem estivesse na sua frente, sem usar etiqueta famosa, ela logo virava o rosto, ou dava as costas. O outro era ignorado, e nem sequer ela ouvia o tom da sua voz, quem dirá o teor da sua prosa.
Numa manhã, depois de fazer compras num shopping muito badalado, no estacionamento, colocando tudo no seu carrão importado, sem notar, deixou cair uma carteira Louis Vuitton, de uma das suas dezenas, que possuía no seu closet abarrotado.
Mas essa, lhe trazia algumas lembranças, de uma viagem à Paris, e de um seu ex-namorado. Seguiu para a sua mansão, mas só quando um dos seus seis empregados, abria o portão, foi que ela sentiu falta. Então, voltou numa carreira, e quando chegou na vaga, tinha jovem negra, com o que lhe pertencia nas mãos, para os lados olhando, procurando quem seria o dono, ou a dona para fazer a devolução.
A emergente chegando, achou que, do que era seu, a jovem já queria estar se apropriando. E foi logo gritando:
- Ei negrinha! Isso aí me pertence!
E tomou bruscamente da mão da moça, que conferindo o que ali havia, e sem nem lhe agradecer, baixou o vidro, e jogou sobre ela alguns trocados, e o pneu saiu cantando!
Ainda balançando a cabeça, disse bem baixinho:
- Pobretona! Que roupa mais cafona.
Na hora, a jovem ficou de olhos molhados, sentindo-se humilhada pela tal burguesa, que ela muito conhecia, dessas revistas de celebridades, sempre esbanjando simpatia, o sorriso de porcelana, e toda a sua riqueza, com as suas outras famosas amizades.
A vida seguia, Margarete com sua tribo de endinheirados saía, se divertia, do bom e do melhor comia e bebia, porém, sempre voltava para casa sozinha.
Algumas semanas se passaram, e a tal senhora abastarda sentiu-se mal.
No almoço, sentada numa mesa, que caberiam duas famílias, e ela só, ficou meio enjoada e indisposta. No caviar, no suflê de salmão, e no camarão, com o seu talher de prata, sequer deu uma garfada.
Foi ao médico fazer alguns exames, e dias depois, o resultado positivo de um câncer de mama, estava em suas mãos, tirando-lhe o chão.
A baronesa era viúva, sem filhos. Depois que ficou milionária, abandonou seus parentes, fez plásticas para ficar diferente da sua origem, e retirar os traços marcantes da sua gente.
Com os empregados, não queria intimidades, aproximação.
Na primeira sessão de quimioterapia, parece até do destino, uma grande ironia, mas, que lhe deu um sorridente bom dia, de jaleco branco, foi a mesma moça, que ela no estacionamento, naquela oportunidade, chamou de pobrezinha, negrinha, que roupa cafona vestia.
Ela abalada, morrendo de medo da doença que lhe acometia, em desespero começa a chorar, pois todo o seu dinheiro, nada nesse momento, poderia lhe ajudar.
Na sala, tinham mulheres, que a vida inteira iriam trabalhar, e nem um por cento da sua fortuna, poderiam acumular.
A democracia das enfermidades ela teria que enfrentar, a igualdade da humanidade, e a sua fragilidade, com a sua atual realidade, ela agora começa a vivenciar.
A enfermeira se aproxima, segurou suas mãos, olhou nos seus olhos e disse:
- Tenha fé! Que essa batalha, a senhora vai vencer! Estou aqui para te ajudar, conte comigo para tudo o que precisar, para o que der e vier!
Como lá no shopping, a jovem moça também a reconheceu, mas não tocou no assunto, do episódio, em absolutamente nada, do que ali aconteceu.
Depois da primeira sessão, voltou para o seu palacete, e olhando para os lados, começou a conversar com Deus, e a questioná-lo pela sua enfermidade.
E veio à sua lembrança, aquela jovem tão cândida, que lhe tratou com tanto carinho e humanidade, e lhe passou uma força inexplicável.
Na segunda sessão, a rica senhora lhe perguntou:
- Ei! Como é seu nome minha filha?
E ela respondeu:
- Me chamo Zelma, sou enfermeira chefe do setor aqui de oncologia, a seu dispor dona Margarete Souto Miranda.
E ela diz:
- Eu tenho a impressão, que lhe conheço de algum lugar querida, mas não consigo lembrar-me de onde!
Zelma rebobinava a cena na sua mente, e como lá, no dia do ocorrido, algumas lágrimas derramaram novamente. Ela chegou mais perto, passou a mão no rosto da senhora, e disse:
- Estou ocupada agora. E foi atender outro paciente.
- Melhoras para a senhora!
Algumas semanas depois, os cabelos de Margarete começavam a enfraquecer, e a encher as escovas com mechas, e ela resolve ir no seu salão, e raspá-los completamente.
Na sexta sessão, ela chegou de boné no hospital, deu um olá para Zelma, que com a voz cheia de afeto, como era de costume, lhe diz:
- Poxa! A senhora é tão linda! Que mesmo carequinha está deslumbrante!
Margarete se levanta, e a abraça carinhosamente.
Zelma, num dia de folga, foi passear numa feira de artesanato, e lá viu lenços belíssimos, porém, bem baratos. De imediato, lembrou-se da sua paciente, e mesmo sabendo da sua sofisticação para o vestuário, ainda assim, confiante, comprou alguns.
Na segunda-feira, durante o doloroso tratamento, Margarete estava enjoada, vomitando e nada bem.
Zelma chega como de costume, aperta sua mão, e lhe entrega a caixa com os lenços.
Margarete ficou surpresa com os presentes, como também encantada com a beleza, e o bom gosto da enfermeira, tão competente, que ela desdenhou, e de cafona, pobretona e negrinha, um dia chamou.
E sequer imaginava, que é esse ser humano, que ela humilhou, que na sua vida, sem saber de nada, agora estava cuidando dela, como um fiel anjo da guarda, sem mágoas e sem nenhum vestígio de rancor.
A jovem tão madura, aquele momento apagou.
Elas trocaram telefones e começou ali, uma linda amizade. Margarete convidou Zelma, para jantar na sua suntuosa casa.
Daí em diante, todos os finas de semana, as duas estavam, uma na outra grudadas. Na piscina, ou na sua casa de praia.
Margarete foi conhecer a humilde residência, onde sua amiga morava, e se encantou com a sua mãe, que assim que a viu entrar pela porta, fez uma oração, colocou a mão na sua cabeça, a dela no seu coração, e disse com toda fé e convicção:
- Você está curada, em nome de Jesus minha filha! Essa maldição já foi para o chão, está quebrada!
Naquele lar tão simples, e que era da dimensão de uma das suas salas, Margarete se sente protegida, segura, como um passarinho no seu ninho. Jamais tinha tido aquela sensação, de aconchego e carinho, tão latente, e uma paz que acalentava o seu coração completamente, e de tudo de ruim, esvaziava sua mente.
O amor que reinava ali, a contaminava de tal maneira que a emocionava.
Depois, de dona Nélia, ela foi provar a sua famosa feijoada.
As amigas foram para o quarto ver um filme, e adormeceram abraçadas. Foi o sono mais profundo e mais revigorante, que Margarete jamais teve na sua suíte, espaçosa e tão bem decorada.
Acordou cheia de energia, sentou-se à mesa, e tomou café com pão, de uma pequena e modesta, padaria, comeu bolo de laranja, que ela, fazia tempos que não comia.
E esse laço, o nó dessa amizade inusitada, só crescia. Os seus empregados, a sua patroa, já não mais reconheciam, Margarete, por nada e por tudo, agora sorria.
E nesses longos anos, que a serviam, jamais haviam visto uma negra, frequentar a mansão, sentar-se à sua mesa, e comer o que ela, para os ricos, frequentemente servia.
Os amigos das festas caríssimas e das badalações sumiram, como miragem, viraram fumaça.
O câncer de Margarete, felizmente foi detectado muito, precocemente, o tumor era minúsculo, e a quimioterapia foi eficaz.
Zelma fez questão de, no dia do resultado do novo exame, ir no laboratório buscá-lo. E com o coração apertado, o recebeu do oncologista, que ao entregá-lo, sorrindo diz:
- Mais uma guerreira vencedora!
Ela suspira aliviada, porque, da preconceituosa senhora, ela já estava muito apegada.
Era seu último dia de trabalho, pois o hospital passava por uma gestão administrativa ruim, e ela foi cortada do quadro de funcionários. Mas ainda assim, feliz da vida, comprou uma caixa de presente, colocou o exame dentro, e foi correndo para a casa da amiga.
Assim que chegou, Margarete estava saindo do banho e colocando na cabeça, um dos lenços que Zelma, de presente havia lhe dado.
- Mas que surpresa boa, você aqui logo cedo! Vai para a piscina tomar um sol, que o dia está lindo, não é menina?
Zelma emocionada, se aproxima, lhe abraça tão forte, quase a sufocando, as suas mãos beijando, e foi a caixa lhe entregando.
- Outro presente amiga? Estou curiosa, está me deixando mal-acostumada!
- Abra! Aí está o melhor presente, que alguém poderá receber nessa vida!
Ao abrir a caixa, ela viu o envelope, com a logo do hospital, e já sabia do que se tratava.
Emocionada e chorando, as duas se abraçam, e Zelma, com a voz embargada, diz:
- Você está curada minha amiga!! Glória à Deus!! Os lenços, você até poderá usar, mas para cobrir seus cabelos sedosos e saudáveis, que vão voltar a nascer, e na sua testa cair.
- Vamos comemorar, fazendo uma viagem de navio! Você topa Zelma? Por favor, me dá esse prazer!
- Eu acabei do emprego perder, portanto, tenho todo tempo desse mundo, para estar com você.
- Perdeu o emprego e está nessa felicidade?
- Eu perdi apenas uma colocação no mercado, mas ganhamos uma guerra pela sua vida! O seu corpo do câncer está sarado, limpo e abençoado!
E as duas foram para o cruzeiro.
Às vezes Zelma sumia, e calada nos seus aposentos, com bloco rabiscando algo, ela sempre estava, e Margarete, pensando que seria um diário, algo íntimo, nada perguntava.
No final do cruzeiro, no último dia, as duas estavam numa festa chique, com uma orquestra afinada, no meio daquela burguesia chata e refinada, quando chegou uma outra milionária, conhecida da nossa personagem aqui na história citada.
Ela se aproxima, Zelma radiante, vivia um conto de fadas. A esnobe mulher, também era famosa nas revistas, e chegando, deu dois beijinhos no rosto de Margarete, e para Zelma, virou a cara e disse, num tom de desprezo e reprovação:
- Você agora viaja acompanhada de serviçais?
Margarete indignada, abriu o verbo e fechou o tempo:
- Essa mulher não é minha serviçal, nem minha empregada! É hoje, minha melhor amiga, está aqui, porque por mim, foi convidada! É o ser mais digno e sincero, que já conheci nesse mundo!
Zelma saiu correndo em prantos, e se trancou na sua cabine.
Margarete foi procurá-la, e no convés da embarcação, uma outra conhecida, passou, e vendo Margarete pensativa, disse:
- Querida! Que coincidência te encontrar aqui! Falei com você a uns três meses atrás, no estacionamento do shopping, mas você não me ouviu, estava com alguém discutindo, em voz alta, preferi não me aproximar.
Nessa hora, à tona veio a sua memória! E ela se lembra, que aquela jovem moça malvestida, que ela chamou de pobretona e cafona, e quase de ladrona, era tão rica! Dos mais nobres sentimentos, que o ser humano hoje, quase não dá valor, e só o seu coração, foi que ela roubou.
Zelma, em momento algum, a constrangeu, a recriminou, sequer do seu feito, cheio de maldade e preconceito, mencionou.
Lavada de lágrimas, com os sapatos nas mãos, a maquiagem borrada, e o peito cheio de gratidão , vai bater à porta, daquele anjo negro, que foi pela sua falsa amiga, ultrajada e humilhada.
Assim que abriu a porta, Margarete diz soluçando, e no chão se ajoelhando:
- Me perdoe! Agora me lembrei de onde te conheço, e nem sei se te mereço!!
Zelma estava com uma lapiseira nas mãos, e aquele bloco que sempre estava rabiscando, na mesinha do navio foi deixando, e disse:
- Aquela pessoa que me humilhou, lá naquele estacionamento, morreu. Não mais existe.
- Como você pôde ser tão gentil comigo, depois de tudo que lhe fiz minha amiga?
E a jovem lhe respondeu:
- Só sabemos se um riacho é profundo, quando neles mergulhamos, se um livro é bonito, educativo, quando o abrimos, e com ele, nos seus textos, nos deleitamos, para dizer que um fruto é doce, temos que dele, estarmos provando. Você só estava cega, mas seu coração, sempre teve olhos, boca e ouvidos, foi o seu modo errado de pensar, que adormeceu esses sentidos, você queria ter e ostentar, e não ser!
Mas as coisas que não se pode pegar, são mais valiosas, que todo ouro e a prata do mundo, jamais poderá comprar.
Selma foi ao banheiro, novamente se arrumar, para a festa voltar.
Margarete constrangida e impactada, com tantas sábias e profundas palavras, olha para o bloco, e viu modelitos de vestidos, dignos de um estilista renomado, e surpresa pergunta:
De quem são esses desenhos Zelma?
Ela responde:
- São meus rabiscos, é um hobby, só uma passa-tempo.
Mas a negrinha pobretona, que ela viu, e à primeira vista a julgou, tinha um talento imenso para moda. Enquanto Zelma se arrumava, Margarete os seus desenhos e modelitos, com o celular os fotografava, para uma grande profissional de uma grife famosa, mandou. Depois do cruzeiro, um carro novo importado, na casa de Zelma, com um laço vermelho chegou, e Dona Nélia, uma cozinha toda moderna, e uma televisão gigantesca de tela plana, muitas polegadas, para ver suas novelas, e seus favoritos programas, da famosa revista ganhou.
E um mês depois, a negrinha pobretona e cafona, um contrato com uma rede de lojas assinou.
O seu sonho, que era um Passa-Tempo, em realidade se transformou, e em pouco tempo, de Margarete tornava-se vizinha.
E aqui, nesse conto, o perdão e a humildade deram as mãos, provando, que as aparências enganam, e que as almas não vestem roupas, nuas, elas são belas!
Basta ter, e olhar, sem preconceito, e enxergar direito, para dentro das suas janelas... quando duas mãos se apertam a sobre a sobra é da mesma cor .
A gente se vê! Davi Salles.

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